quarta-feira, novembro 04, 2009

Orgia justiceira

Com o processo Face Oculta assistimos ao fim da linha em matéria de respeito pelo segredo de justiça, as investigações mantiveram-se no maior segredo até o momento escolhido para as tornar públicas que coincidiu com a constituição de arguidos de alguns dos suspeitos. Mas ficámos a saber muito mais do que o nome dos arguidos, poucas horas, ou talvez minutos depois de iniciadas as buscas já os jornalistas estavam na posse de muita informação que foi divulgada e que não foi desmentida pela Procuradoria-Geral da República.

Em menos de vinte e quatro horas os jornalistas sabiam pormenores das investigações, tinham conhecimento da matéria que justificava as suspeitas sobre algumas personalidades, davam pormenores dos recursos tecnológicos usados nas escutas para que se percebesse como a PJ ouvia conversas dentro de edifícios, as televisões até mostraram imagens dos mandatos de busca.

Aquilo a que assistimos não foi a uma fuga de segredo de justiça, tal campanha não resultou de dicas dadas a jornalistas bem relacionadas nos meandros da justiça. Ou os jornalistas inventaram tudo e mais alguma coisa ou teve de haver uma preparação minuciosa que assegurasse que a informação chegaria a todos os órgãos de comunicação poucos minutos antes de os magistrados irem para a rua e uma selecção criteriosa da informação que poderia ou convinha ser distribuída tendo em conta os objectivos definidos para esta mega operação de propaganda.

Os jornalistas mais preocupados com os objectivos obscuros de tal generosidade do que com as vendas de papel agradeceram às fontes, os partidos da oposição mais preocupados com o pecúlio eleitoral do que com o respeito da democracia e dos princípios constitucionais excitaram-se, a Presidência da República mais preocupada com a imagem do Presidente do que com o que se passa no país manteve-se em silêncio.

Desta vez ninguém se incomodou com o segredo de justiça e muito antes de algum juiz ou tribunal avaliar as provas ou a fundamentação das condenações já há várias personalidades condenadas na praça pública. Como o seu passado suscita muitas piadas todos demos por justo o julgamento, foram sumariamente condenadas, sem direito a defesa e sem sequer terem visto a cara dos justiceiros.

Há poucos meses os sindicalistas do Ministério Público vinham para as televisões exigir que as investigações do caso Freeport contassem com os meios adequados, o que sugeria a insinuação de que poderiam ser travadas por quem pudesse recusar esses meios. Entretanto, surgiu o caso BPN, bem mais complexo , extenso e grave do que o Freeport e ninguém questionou os meios, da mesma forma que nem o Jerónimo de Sousa falou d a celeridade que agora exigiu na Face Oculta. Afinal devem ter chuvido meios para os lados do Palácio de Palmela, não só existe o caso Freeport (que parece estar a marinar à espera de melhor momento do calendário político), o caso BPN que deve mover menos esforços do que uma investigação a uma associação recreativa e, como o trabalho não faltasse e os meios sobrassem, temos agora a Face Oculta que dá lugar a uma mega operação e até conta com altas tecnologias secretas e milagrosas adquiridas (terá sido o governo a pagar ou porque este boicota os magistrados foram eles a fazer uma rifa para adquirir o sofisticado equipamento?) aos serviços secretos israelitas.

É evidente que durante uns tempos vamos deixar de ouvir da Face Oculta, os arguidos sê-lo-ão até que os prazos o permitam, o caso Freeport vai sendo notícia à medida que surgir algo que permita fazer insinuações em relação a José Sócrates e o caso BPN vai ter o mesmo destino da famosa Operação Furacão.

Isto não é justiça, é uma orgia justiceira digna do tempo em que a Santa Inquisição queimava os pecadores no Terreiro do Paço, promovida por gente que não dá a cara e que usa os poderes que têm para defender os seus interesses. É tempo de questionar o modelo que a democracia concebeu para o funcionamento da justiça, antes que os "bons" da justiça acabem com a democracia com o argumento de que querem acabar com os maus políticos.